logo

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Família e Escola: aliados ou inimigos?

Por: João Malheiro, doutor em Educação pela UFRJ

Alguém me dizia certa vez, evidentemente de forma irônica, que se um marciano aterrissasse no nosso planeta e observasse o nosso relacionamento social, perguntaria perplexo a qualquer terráqueo: “Olhe: aconteceu alguma revolução recentemente nas famílias de vocês? É que se percebe um fato curioso: os pais vão buscar os filhos às quatro horas da manhã numa festa longínqua, carregam suas mochilas quando os levam para a escola mesmo já grandinhos, correm desesperados aos supermercados para comprar guloseimas que seus pimpolhos lhes exigem deitados no quarto vendo TV, matam-se de trabalhar para que eles viajem nas férias para a Disney, chegam indignados nas escolas para reclamar das más notas com os professores... Os jovens fizeram alguma revolução e estão “dominando” a terra?”

Apesar de que tais filmes de ficção estejam na moda, na verdade a cena imaginada reflete a realidade do momento. Percebe-se um crescente excesso de protecionismo sobre os filhos e consequentemente uma geração de pais exaustos e de filhos superprotegidos e imaturos. Vários motivos para tais comportamentos paternos são apontados pelos psicólogos e sociólogos: desejo de compensar ausências físicas, desconhecimento de outras formas mais profundas de amar, influências modernistas que não se pode exigir, associação distorcida do prazer com felicidade, visão do sofrimento como um mal que é preciso evitar a qualquer custo, frustrações de infância que se projetam depois nos filhos, formas egoísticas de amar-se a si próprios através dos filhos como extensões do próprio eu...

Há alguns anos, nas escolas dos Estados Unidos ganhou fama o conceito de “pais helicópteros”: bastava o filho chegar a casa com uma suspensão da diretora da escola, ou emburrado devido a uma advertência mais incisiva de um professor, ou ainda exibindo algum arranhão no braço fruto de uma briga no recreio para que os pais aterrissassem imediatamente no colégio para pedir explicações. Infelizmente, como quase tudo que acontece por lá, esta moda também chegou à nossa realidade brasileira. Muitos pais vêem no centro educativo que escolheram para educar seu filho apenas um lugar onde este deve aprender uma série de conteúdos da forma mais lúdica possível e sem esforço, e esquecem (talvez nunca tenham aprendido) que a escola deve ser muito mais do que isso. A escola deve ser um lugar privilegiado para formar, nos pupilos a inteligência teórica (a que lhe permite adquirir os conteúdos), a inteligência prática (a que o faz aprender a escolher aquilo que o torna realmente feliz), a vontade (que harmoniza inteligência e afetividade rumo ao bem) e, por fim, a afetividade (instintos, sentimentos, emoções, paixões) direcionado-a para os outros. Acredito, portanto, que os pais devam se preocupar muito mais com o que está acima do que com o importante resultado do ENEM...

Quando os pais se sentem os principais protagonistas desta educação integral e enxergam na escola apenas uma continuadora do que ensinam em casa, e quando tentam educar em todas essas frentes no seio do próprio lar, sentindo na pele que se trata de uma tarefa árdua, que exige muito mais dizer “não” do que “sim” – este último especialmente nos primeiros anos de vida até ao início da adolescência – ficam muito agradecidos por encontrar na escola uma aliada que também se sacrifica para que seu filho seja uma pessoa de verdade. Vislumbram, por trás da exigência do dever de casa, do livro difícil que é preciso ler, da obrigatoriedade do uniforme da educação física, da pontualidade na entrega dos trabalhos, da decência nos relacionamentos, um parceiro que quer realmente o melhor para o próprio filho.

Fica claro, portanto, que os “pais helicópteros” precisam refletir melhor acerca do genuíno conceito do que significa e para que serve educar, percebendo que não podem deixar-se dominar por sentimentalismos enganosos. Só pais com autoridade moral – isto é, que se esforçam por dar sempre bom exemplo e exigem dos filhos os mesmos valores e virtudes que vivem –, são capazes de compreender o verdadeiro papel da escola: formar um ser humano que pensa e que ama. Este será sempre o critério para avaliar corretamente uma escola.
Contra este excesso de protecionismo se rebelaram os pais Gever Tulley e Julie Spigler, fundando a Tinkering School. Trata-se de uma colônia de férias de verão nos Estados Unidos que pretende fomentar a criatividade dos jovens. Ali eles aprendem a fazer projetos, invenções e atividades de risco, supervisionados por monitores. Recentemente publicaram um livro intitulado “50 coisas perigosas que você deveria deixar os seus filhos fazerem” [Fifty Dangerous Things (you should let your children do)]. Escrito com uma boa dose de provocação, é um guia de jogos “perigosos” que oferecem alternativas de diversão altamente enriquecedoras: acender fogueiras com lupas, escalar árvores, jogar futebol de noite ou na chuva, atravessar um rio por uma corda, subir no telhado...

Mesmo admitindo-se que poderá haver alguma ideia disparatada no livro, este pelo menos tem o mérito de meter o dedo em uma das chagas contemporâneas: a obsessão pela segurança e em evitar a todo custo que os filhos sofram ou passem algum mau momento.

Logicamente, os pais deverão descobrir o ponto médio entre proteger demais e “deixar a coisa solta” (o que também é uma forma de egoísmo disfarçado). A prudência os levará a discernir o que verdadeiramente representa uma ameaça para os filhos e o que não. Mas devem ter presente que educar é sempre um risco da liberdade, e só confiando nas potencialidades racionais e volitivas dos filhos, ou seja, na capacidade que eles têm de ir distinguindo o bem do mal, fruto da boa educação na infância, será possível sonhar com filhos maduros, felizes e viver em paz.

e-mail: malheiro.com@gmail.com BLOG: escoladesagres.org

Um comentário:

Maria Teresa disse...

Muito bom o texto! Aborda alguns pontos fundamentais sobre essa tríade filhos/pais/escola. Entre os motivos para o desentendimento, voto nesta como a base das outras:
"formas egoísticas de amar-se a si próprios através dos filhos como extensões do próprio eu..." Vejo com clareza que as pessoas transferem p seus filhos seu orgulho em não admitir os próprios erros. É exatamente como vc diz: os filhos são como extensões, e eu diria, do próprio ego inflado.

Postar um comentário