logo

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Faces da minha mãe

Por: Giulia Zelesco Barreto

Minha mãe é neurótica. E não estou exagerando:

Tudo tem uma ordem, mesmo que não faça sentido. As panelas têm que estar com o cabo virado 30 graus para leste, os ovos na geladeira arrumados de acordo com a validade, tampas verdes para as garrafas de água que ficam na geladeira e tampas vermelhas para as que ficam fora. Andar descalço é proibido, pintar as unhas tem hora regulamentada e comer sucrilhos só se for em cima da pia para não fazer farelo. Comer no sofá é uma realidade paralela.

Pano lá em casa é um departamento segmentado. Existem os de mão que tem bordadinho nas pontas, os de prato que tem bordadinho nos cantos, os de maçaneta que tendem a ser meias velhas, os de janela que são fraldas de bebê antigos e os de chão que são camisas velhas.

Os panos de chão são novamente segmentados. Temos os de ladrilho, os de madeira, os de fórmica...

O pior de tudo é que as regras mudam. De um dia para o outro todas as panelas estão com o cabo virado 73,5 para o nordeste. É a nova ordem. Estudem, decorem, façam um esquema para lembrar. Não importa. A partir de hoje os ovos com menor prazo de validade fazem uma formação em X no meio da geladeira enquanto os outros têm a casca marcada por um pontinho cor de rosa.

Não adianta argumentar. A única coisa a fazer é se adequar e seguir a nova ordem.

Minha mãe é insana:

Trabalho de física para o colégio. Ela se voluntaria para me ajudar. Fomos para a escada de incêndio, afinal meu trabalho era fazer um foguete. Então minha mãe começa a reclamar que o foguete voa pouco e que é sem graça. Põe mais álcool nele, é o sábio conselho que minha mãe me dá. Resultado: Uma escada de incêndio parcialmente queimada.

Dia de Páscoa. Minha mãe tem a brilhante idéia de esconder ovinhos pela casa. Escondeu muito bem escondido. Tão bem que ninguém conseguiu encontrar, nem ela. Resultado: meses depois ainda encontrávamos ovos completamente derretidos e estragados.

Minha mãe tem mania de perseguição:

Qualquer talher que some na nossa casa, minha mãe já acusa: vocês jogaram no lixo sem querer! Quantas vezes já remexemos o saco de lixo procurando uma colher que depois misteriosamente aparece na gaveta.

E as acusações não terminam por aí. Roubaram meu relógio, meus óculos e minhas meias! Um item é achado debaixo do travesseiro da dona, outro ela jogou pela janela ao bater o lençol e o terceiro estava no seu armário.

Pois é, minha mãe faz ordens mas não é ordeira.

Minha mãe tem manias insuportáveis:

Ela termina de comer a sobremesa e ataca uma batata frita, depois come chocolate e mais tarde pão com queijo. E fica nesse doce-salgado-doce até a família toda estar enjoada.

Minha mãe inventa coisas:

O mais famoso mito é o da agulha. Basicamente, é de ter cuidado na hora de usar uma agulha pois se você deixar ela cair no chão, alguém pode pisar nela, e a agulha entrar na corrente sanguínea até chegar no coração matando a vítima.

Outra invenção é o do figo. Cuidado na hora de comer figo porque os fazendeiros colocam veneno de passarinho mortal na casca da fruta. Passei minha infância com medo de figos venenosos.

Minha mãe tem uma realidade paralela:

As coisas no mundo da minha mãe têm gostos e cheiros estranhos. Sorvete tem gosto de gordura vegetal hidrogenada e pão tem gosto de brometo. Coisas aleatórias podem ter gosto de ovo, água sanitária, roupa suja ou mofo.

Mesmo ela sendo a única que vive nessa realidade paralela, ela sempre proteje sua prole. Assim, mesmo achando uma delicia, não podemos comer porque o seu afiado paladar e olfato não aprovaram.

Minha mãe fala coisas esquisitas:

Têm certos termos que ela não percebe que saíram de uso. Até hoje me lembro do dia em que fomos comprar roupas e ela perguntou se existia uma camisa com tal fazenda. Eu tive que fazer a tradução e explicar que fazenda era tecido. Não contente, na hora de sair da loja, minha bendita mãe dá de cara com a porta de vidro.


Conclusão:

Fico pensando nessa mãe que eu tenho - neurótica, insana, que inventa mitos, vive numa realidade paralela e fala coisas sem sentido - e no final das contas fico feliz.

Sei que não é a maioria das pessoas que tiveram a oportunidade de conhecer esse lado bizarro que toda mãe tem.

Sei que muitas mães trabalham fora e chegam tão cansadas em casa, que só conseguem ser a mãe cansada, e no final de semana, a amorosa.

Fico feliz por saber que tive um plus, conheci muitas faces. A amorosa, carinhosa e compreensiva, e outras, nem tão simpáticas assim, acredite.

Agradeço a minha mãe por ter feito a escolha de me mostrar todas as faces de uma mãe. E por isso, todo dia, eu me esforço para lembrar que o cabo da panela tem que estar virado 84,37 graus para sudeste, segundo a ordem vigente.

8 comentários:

Odete A. Stingrer disse...

Nuito bom! Genial, toda mãe tem um pouquinho disso tudo.

Maria Teresa disse...

A Giulia e os meus filhos não entendem que sua mãe e eu fomos criadas, digamos assim, em outra época. O mito da agulha caída no chão que entraria "na corrente sanguínea" vinha no pacote da "fazenda", do cheiro de mofo nas coisas e em aproveitar panos velhos ( minha bisavó dizia que velhos são os panos e ainda são úteis. Pelo menos somos pitorescas e nossos filhos podem se divertir um pouco às custas dos nossos "micos". Maravilhoso o seu texto, Giulia, com um perfeito fecho. Bj para vc e sua mãe

Liana Clara disse...

Lembrando das manias das mães, eu lembro muito e guardo com certo receio a mania da minha avó, (que eu chamava de mãe) de esconder todos os metais, a vista, na casa, em dias de trovoadas. Ela dizia que o metal ia atrair o raio pra dentro de casa!! Até hoje fico quietinha em casa quando ronca trovoada.

Clara disse...

Genial esse Texto, morri de rir! Acho que toda mãe tem um pouquinho dessas loucuras. E tenho certeza que um dia vou ser exatamente assim!

Luiza disse...

Bom, todas as coisas legais que eu ia escrever, a Giulia já colocou no post dela... mas eu tenho uma história particular, sobre nossa mãe, que eu gostaria de adicionar aqui, pra complementar o perfil: Quando eu tinha uns seis ou sete anos, peguei mania de morder a ponta de trás do lápis. Minha mãe ficava horrorizada quando via dentro do meu estojo aqueles lápis com a parte de trás toda mastigada e com a pintura descascada, mas por mais que ela falasse, eu não parava. Daí um belo dia ela me chega com uma caixa de lápis novos, lindos. Lembro com nitidez até hoje, eles eram pintados de um verde escuro muito bonito e a madeira ao redor da grafite também era mais escura do que a dos lápis comuns que eu tinha na época. E, impressos no corpo do lápis, em dourado, vinham uns ideogramas japoneses. Minha mãe me deu os lápis novos, seqüestrou os antigos mordidos, e sentenciou: esses são lápis japoneses, se você os morder, pode pegar uma doença japonesa que ninguém aqui vai saber curar!
E não é que eu parei de morder lápis?!

Liana Clara disse...

ahahhahahahha Luiza sua mãe é genial!! Meio na base do terror, mas genial!! ahahhahahah
Estas histórias estão ficando cada vez melhores.

Maria Teresa disse...

Outras manias da nossa geração, Liana, era "pegar golpe de ar", não sair no "sereno", não falar no telefone ou ver TV na hora da tempestade, pois a "faísca elétrica poderia entrar pelos fios", não envesgar os olhos de brincadeira, pois "se der um vento, seu olhos ficarão assim pra sempre". Terrível, mas agora divertido de lembrar!

Liana Clara disse...

Davam muito medo, em nós, quando criança estes "terrorismos" dos avós ou mães. Mas este de "envesgar" os olhos com um vento, acredito até hoje!!! ahahahhahahhaha

Postar um comentário