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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

EmContando – 53 - Memórias (continuação) - Maçãs Secas

 (continuação, clicar aqui)
Mariana estava sentada no tapete com suas perninhas cruzadas segurando um saquinho metalizado do qual retirava pedacinhos de maçãs secas enquanto assistia a um desenho na televisão.

Essa imagem tão simples e doce levou-me de volta a Weidenberg. Já não morávamos no barracão da estrada de ferro. Havia na cidade uma grande marmoraria. Ocupava um terreno perto dos barracões. Os enormes blocos de mármore e granito formavam ruelas, cruzamentos, verdadeiros labirintos perfeitos para brincadeiras de crianças como nós.

A proprietária da marmoraria, uma senhora misteriosa que raramente se deixava surpreender, morava numa bela casa de dois andares na Rua Principal. A marmoraria começava nos fundos de seu quintal. Junto à casa foi construído um anexo, não sei quando nem com que fim. Esse anexo constava de dois cômodos bastante amplos. Era lá que morávamos agora. Não era bom, nem ruim, mas ganhamos mais um pouco de privacidade e independência.

Eram tempos difíceis aqueles anos pós-guerra. Faltava tudo, principalmente para os intrusos habitantes oriundos de outras terras. Éramos estrangeiros num país arrasado por bombardeios, invasões e desordens de todo tipo. A reconstrução exigiria a liderança de homens empreendedores. Herr Schiller, prefeito de Weidenberg, era um homem assim. Não sei se obedecia a ordens superiores ou se as iniciativas com que se pôs a reorganizar  seu pequeno império eram fruto de sua criatividade.Certa manhã todos os estrangeiros que engordavam a lista de habitantes da pequena Weidenberg receberam uma estranha e lacônica ordem.

“Todos devem estar, sem falta, no dia x, às y horas, na estrada na saída da cidade.”

O susto foi geral. Só se falava disso. O medo tomou conta dos mais pessimistas. Alguns chegaram ao pânico e outros até passaram mal, suponho.

No dia e na hora marcados, todos estavam lá, inclusive curiosos locais que nada tinham a ver com a intimação. A saída da cidade estava congestionada por pedestres de todas as idades. Suspense e curiosidade pesavam no ar. Atrás de Herr Schiller iniciava-se uma  inusitada procissão. Em ambos os lados da estrada estavam plantadas macieiras. Algumas eram belas e frondosas, outras mirradas como crianças mal nutridas. Herr Schiller tinha o  nome de todos os seus novos tutelados e conforme seguia a procissão, as macieiras eram  sorteadas entre os que estavam na lista. Palmas, e abraços foram a resposta a tal estranha convocação.

Meses se passaram até que as macieiras produzissem frutos. Quase diariamente fazíamos passeios até nossa árvore querendo ver os primeiros brotos. Crescidas e maduras nossas eram as maçãs mais vermelhas e perfumadas da estrada. Colhê-las foi uma festa regada de emoção.

Mamãe descascava e cortava-as em finas rodelas.  Estendemos largas tábuas sobre alguns dos blocos mais baixos de granito e os cobrimos com panos limpos.  Ali espalhamos as rodelas de maçãs para secarem ao sol. Nossa tarefa de crianças era virar e revirar as rodelinhas algumas vezes ao dia e recolhê-las depois do por do sol. Comemos muitas maçãs frescas naquele outono e guardamos as secas para o inverno.

Mariana mastigava, sem muita atenção, os pedacinhos de maçã sem desconfiar dos pedacinhos de história que alimentavam a memória de sua avó sentada a seu lado enquanto assistia ao “Boo”.

Agnes G. Milley

Um comentário:

Patricia disse...

LINDO LINDO LINDO!!!!

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