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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

EmContando - 45 - Retratos de Infância (memórias)

Esta história são fragmentos de lembranças de um passado distante. São como retratos num álbum de fotografias, uma coleção de cenas congeladas no tempo. Mamãe, minha irmã de dois anos de idade e eu caminhávamos, com pressa, por um largo corredor branco de um hospital infantil. Não sei se nos foi dito por que e para que estávamos lá. Eu só pensava em mim. Crianças pequenas só pensam em si. Nem mais tarde ocorreu-me refletir sobre os sentimentos ou aflições de minha mãe. Na cena seguinte ela já não estava lá.

Haviam nos colocado, em pequenos berços, numa enfermaria de quatro leitos. A sala era muito grande, e o teto, muito alto. As três gigantescas janelas  deixavam passar a claridade e o verde do parque. Aquele hospital em tudo se parecia com as Santas Casas que eu conheci mais tarde.

Meu berço era o primeiro, perto de uma das janelas. Junto ao meu, ficava o de minha irmã. O seguinte estava vazio, e no último, gemia e chorava uma menina     talvez  do  meu tamanho. Seus braços e pernas ficavam amarrados às grades do berço. Tinha queimaduras por todo o corpo. Ela era só.O tempo todo só. Ninguém parecia importar-se com sua dor, muito menos com a sua solidão. Eu era covarde. Seu sofrimento me assustava. Em nenhum momento   tive coragem  de chegar perto de seu berço. Ela me dava medo. Será que as enfermeiras também a temiam? Por que ela causava tanta repulsa? Seu choro e seus gritos me torturavam. Ela tinha sede. Sede de água e de alguém.
Um dia, chamaram eu nome. Depois, lembro-me de estar numa sala ainda maior que a enfermaria. Dois  homens, grandes também, falavam comigo, mas eu não os entendia. Aliás, eu não entendia nada e não sei se tudo era realmente tão grande ou se eu que me sentia muito pequena, indefesa. Colocaram-me no rosto um pano embebido de uma substância de cheiro muito forte e contaram comigo: ein, zwei, drei, até seis, e aí eu adormeci.

Haviam me operado a garganta. Sentia dor, mas não muita. Minha irmã não estava no berço. Era a sua vez. Mas ela não sabia falar, como a fariam contar? Naquela hora pensei nela, não em mim. A menina no canto continuava a  chorar. Não sei quando ela dormia.

Deram-nos algo gelado pra comer Eu gostei, talvez fosse sorvete. Minha irmã só chorava. Agora eram duas a me afligir. Eu não podia fazer nada pela  menina do canto, mas por minha irmã eu podia. Toda vez que a enfermeira saía do quarto, eu saía do berço, pegava Kati no colo e a punha no  meu berço. Abraçadas, aproveitávamos cada instante da ausência da gigantesca bruxa, que ao voltar vociferava: “ Nein, nein, nein...” e, sem dó, jogava minha irmãzinha de volta no seu berço. A gritaria recomeçava. Essa passou a ser nossa rotina todos os dias e todas as noites. Eu pouco me importava com a fúria e a insensatez daquela que mais me parecia ter saído de um livro de histórias. A diferença é que vestia branco, e não preto.

À tarde, quando o sol se afastava e começava a escurecer, a enfermeira largava sua vassoura de bruxa e pegava um grosso livro de histórias. Em pé, a alguns  passos de meu berço, ela lia, em alemão. Eu não entendia nada do que ela dizia, mas naquela hora eu a perdoava. Quem sabe, se falássemos  a mesma língua talvez até nos entendêssemos.

Assim se passaram muitos dias. Eu me sentia bem, mas a garganta de Kati ainda sangrava, de tanto ela chorar. Um dia vi o rosto de mamãe na janelinha da porta. Ela gesticulava. Sabia que tinha alguma coisa importante para me dizer, mas ela não podia entrar. Era proibido! Por fim, a bruxa, que agora era fada, me trouxe um bilhete. Consegui ler, com alguma dificuldade, e lembro que respondi, mas não sei o que disse, nem se mamãe entendeu o que eu escrevi. Eu tinha seis anos de idade e a única língua que eu conhecia na época era a minha língua materna, o húngaro. De alemão, eu sabia pouco mais do que “ja” e “nein”.

Eram anos difíceis. Pós-guerra, 1946. Escombros, destruição, insegurança, fome, ratos, medo, desalento e muito cansaço. Felizmente, em alguns corações, ainda sobrava um pouco de solidariedade e de esperança.

Após duas semanas , fomos liberadas do hospital. Esperávamos por mamãe. Não sei se Kati entendia, mas ela já não chorava tanto. Não sei o que aconteceu com a menina do canto. Nunca a esqueci. Nós saímos, e ela ficou.

Deitada em meu berço, eu olhava com prazer o verde do parque, e chorei. Pela primeira vez eu chorei, mas não de alegria por voltar para casa. Nosso lar não era tão doce quanto eu desejava que fosse. As dificuldades eram muitas e, naqueles dias, meus pais pouco se entendiam. Lutavam contra muitos monstros, os seus e os de fora. O conto de fadas ainda não chegara ao fim. Eu sonhava com o dia em  que eu pudesse dizer:  “....  e foram felizes para sempre!”

                                Agnes G. Milley

3 comentários:

Patricia disse...

Querida amiga!

Esse novo depoimento que nos dá sobre as imensas dificuldades que passou na infância, é mais um motivo 1º) para agradecermos a Deus pelo socorro que sempre nos manda nas dificuldades aceitas sem rancor, e 2º) para apreciar o outro lado: com as dificuldades que superamos, tornamo-nos pessoas mais sólidas, pé-no-chão, senceras e ciosas do sofrimento alheio, podendo transmitir a confiança de que tudo passa...menos a PRESENÇA DE DEUS SEGURANDO NOSSA MÃO até encontrarmos as soluções que precisamos.

Abração FELIZ da amiga de todas as horas!
Pat

Mª Teresa Serman disse...

Muito lírico e comovente, Agnes, como sempre. Apesar do contexto de dor, o texto nos arrebata pra junto das crianças, e é uma história de amor, sofrido, mas de amor. Obrigada, bj, Tetê

Liana Clara disse...

Agnes está sempre nos premiando com suas histórias cativantes e comoventes. Uma verdadeira lição de vida pra todas nós.

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