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sexta-feira, 17 de maio de 2013

EmContando – 34 - Memórias

Maio é um mês especial. Mês de Maria, mês das noivas , clima gostoso e boas recordações do final da Segunda Guerra Mundial.

Éramos um grupo de refugiados  húngaros, albergados, temporariamente,  em uma fazenda na Alemanha. Nossa morada era fria! Pelas frestas, entre as tábuas que formavam as paredes de nosso galpão, o vento gelado encontrava caminho até cada um de nós. O feno que cobria o chão era pouco, mas seria ali, agora, o nosso lar. Sobre o feno ralo, entre o maquinário da fazenda, dormíamos, acordávamos e brincávamos.

Anyi (assim chamávamos nossa mamãe) achou um livro para nos distrair. Como, nem posso imaginar. Era a história de
Pinóquio, o boneco de madeira. O livro era escrito em alemão, com letras góticas, e as ilustrações eram apenas pequenos desenhos nos cantos de algumas páginas. Penso que Anyi não lia o livro, não entendia o que estava escrito, mas virava as páginas e contava a história da maneira como se lembrava dela. Zsuzsi (minha irmã) e eu folheávamos o livro com avidez. A parte que mais me impressionou foi a parte em que Pinóquio, transformado em burro ,  é atirado ao mar. Pobre Pinóquio! Cheguei a ter pesadelos com o pobre burro sendo comido pelos peixes. E, que mar era aquele? Como poderia uma criança tão pequena como eu imaginar o mar?

O livro, de páginas amareladas, ainda olha para mim da estante da sala. Posso brincar com ele e trazer de volta as emoções de meus quase cinco anos de idade.

O tempo foi passando e eu só percebi que havia crescido quando, um dia, não consegui mais calçar meus sapatos. Estavam pequenos demais. Lá fora ainda estava frio e Zsuzsi e eu tínhamos agora apenas um par de sapatos; os dela. Passamos a usá-los em dias alternados. Foi uma solução, mas além de meus sapatos, perdemos a companhia uma da outra. Brincar lá fora, sozinha, não era nada divertido. Anyi nunca me contou como ela arranjou um novo calçado para mim.  Era um par de sandálias de tiras largas que eu usava com meias grossas para aquecer.

No galpão não havia rádio. Os adultos suspeitavam que a guerra estava por terminar, uma vez que os Aliados já estavam na Alemanha. A espera, sem notícias, o desconforto, as saudades e o medo do futuro incerto foram, aos poucos, desgastando o relacionamento entre os habitantes do galpão. Irritação, desconfianças e até brigas já eram frequentes. Os nervos estavam perto de uma explosão quando na manhã do dia 6 de maio de 1945 ouvimos  roncos de aviões. Corremos para fora para assistir ao mais emocionante espetáculo de todos aqueles anos. Era o fim da guerra. Esquadrilhas desfilavam pelo céu azul da primavera de meus cinco anos. O sol cintilava na fuselagem dos aviões que voavam muito alto, e o ronco que ouvimos no galpão era, agora, uma explosão não só dos motores, mas da alma da pequena multidão que ali chorava, ria, se abraçava e saltava de alegria.

O sol  brilhou, enfim, mas não aqueceu. No chão, havia ainda neve aqui e acolá. A grama verde teria que lutar para romper o solo congelado e os botões de flores levariam mais algum tempo para desabrochar.

                                                                                                        Agnes G. Milley

2 comentários:

Mª Teresa Serman disse...

Mais um texto lírico, comovente, notável pelo uso das palavras e das imagens. Agnes, vc consegue evocar memórias pessoais sendo universal, pois seu coração é assim. Bj, MªTeresa

Patricia disse...


Agora deixo uma sugestão, Agnes: você já pensou em ESCREVER sobre todas as suas memórias de infância e juventude, sem necessariamente contar sobre assuntos pessoais em adulto, que nem fariam parte daquela época distante do final da 2ªGM?

Faz pouco tempo li um livro, só escrito e publicado recentemente, de um sobrevivente dos campos nazistas: UMA CRIANÇA DE SORTE(de Thomas Buergenthal). O aspecto mais interessante do relato, é que ele fala com as palavras do adolescente, na época em que iam acontecendo as coisas. A coragem e o otimismo dele são uma belíssima lição de ESPERANÇA para qualquer pessoa de qualquer idade!

Não sei se você leu o livro, mas esses seus relatos da infância com sua família durante as dificuldades de todos os civis, até o final da guerra, me trouxe de volta aquela sensação de COMPLETUDE DE VIDA, ou melhor, a realização completa do que Deus nos pede que aceitemos.., e como vemos, pelo que você tem contado da coragem e carinho dos seus pais e irmãos em várias ocasiões, você também passa a MESMA ESPERANÇA de Thomas Buergental(ele chegou a ser Juiz na Corte Internacional de Justiça de Haia, já como cidadão norteamericano.) Abração,
Pat

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