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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Quais são os seus problemas mesmo?

Faltavam dois dias para o Natal do ano passado e estava indo almoçar aqui perto do trabalho. Eu ia pela rua bastante preocupado com meus problemas, que não são poucos.

Na calçada do restaurante, do lado de uma loja abandonada, estava caído um senhor, um mendigo conhecido aqui da região. Já não o via há muito tempo, mas lá estava ele e como sempre costumo cumprimentá-lo, parei para ver se ele estava vivo.

A cena é forte, mas preciso descrevê-la. Imaginem um senhor de sessenta anos, hoje ele completa 61 segundo me disse, de mais ou menos 1,60m, aparentando pesar menos de 50kg, caído no chão com as calças todas sujas de fezes, e com o resto da roupa totalmente imunda. Os braços e as mãos muitíssimo sujos e o rosto encostado num resto de comida que não sei se era vômito ou um pedaço de uma quentinha.

Ao reparar que alguém havia parado na frente dele, abriu os olhos sem se levantar ou mexer a cabeça.

Quando viu que era eu, sorriu e me cumprimentou ainda deitado. Ele sempre costuma cumprimentar efusivamente as pessoas e quase nunca pede nada, mas dessa vez, parecia sem forças para qualquer efusividade.

- Como vai o senhor?

Perguntei sem pensar na besteira que estava dizendo. Era óbvio que ele não estava bem.

- Oi meu amigo. Olha, eu vou bem, eu vou bem.

Dizendo isso, se sentou na calçada. Quando ele fez isso, a cena piorou. Uma bola de fezes rolou para o lado e a comida veio toda grudada no rosto. E ele continuou falando:

- Sabe, eu estou feliz. Sonhei que uma senhora tinha me deixado mil e duzentos reais aqui enquanto eu dormia e deu para comprar quentinha para todo mundo!

Como pode estar nesta situação e dizer que está feliz?

E ele continuou.

- Sabe, ontem eu fui atropelado aqui na frente - e me mostrou a mão inchada como uma bola. Chamaram a ambulância, mas não quiseram me atender. Depois chamaram outra e eu fui atendido, mas parece que não quebrou não. Só está doendo um pouco. Mas sabe, eu estou bem. Estou feliz.

Repetiu outra vez sorrindo.

- Eu vou voltar a escrever. Estou feliz porque vou voltar a escrever.

Eu não sabia o que fazer nem o que dizer. As coisas só pioravam.

- Mas o senhor está precisando de alguma coisa?

Perguntei isso mesmo sabendo que estava sem nenhum centavo no bolso. É raro estar com dinheiro no bolso, em geral sempre uso cartão.

- Olha, eu queria mesmo era me levantar para ir ali - apontou para a árvore, talvez quisesse ir fazer alguma necessidade. - mas não consigo. Você me ajuda a me levantar?

Confesso que num curto momento pensei se devia ou não encostar nele do jeito que ele estava. A situação era bem feia.

- Só isso?

Perguntei para ganhar tempo

- É, eu queria me levantar.

Um momento depois de titubear, pensei: "Nem que eu tenha que tomar um banho depois, vou ajudar esse senhor a se levantar. Eu pergunto se ele precisa de alguma coisa e ele me responde que só precisa se levantar. Não posso negar isso a ele".

Segurei-o pelos braços e o levantei. Precisava ver sua expressão de alegria só por se levantar. Com toda certeza ele não estava caído por causa de bebida. Não senti um cheiro de álcool, antes tivesse sentido.

- Muito obrigado. Olha, um feliz Natal para você!

- Para o senhor também!

Mal deu tempo de me despedir e ele já foi andando para a árvore com um andar meio desequilibrado. Nesse momento desabou uma chuva torrencial e ele foi para a chuva para refrescar um pouco ou para se limpar um pouco, não sei ao certo.

Fiquei sem saber o que fazer, pensando que podia tê-lo ajudado mais, mas não fiz mais nada.

Passei uns dias sem vê-lo novamente e fiquei preocupado com ele.

No sábado depois do Natal, estava passando de carro perto do lugar que ele costuma ficar e lá estava ele, sentado nas escadas de um banco, apoiado com os cotovelos nos joelhos, vendo a rua.

Estava com as mesmas roupas, mas estava com outra aparência.

Parei o carro e saltei para falar com ele.

Ao me ver, abriu um sorrisão e exclamou:

- Ooooi meu amigo! Como vai?

- Eu vou bem, e o senhor?

- Eu estou bem! Estou bem!

- E sua mão, como está?

Ele pareceu admirado por eu me lembrar da mão dele.

- Ela já não dói quase nada. Desinchou bastante.

Conversamos uns momentos, dei uma coisa a ele e me despedi.

- Olha, um feliz ano novo para você!

Me disse ele.

- Igualmente para o senhor - respondi.

Na semana passada já vi que ele estava com uma roupa bem mais limpa e que tinha mudado de lugar. Conversei um pouco mais com ele.

Ele me disse que iria fazer aniversário hoje e me disse que tinha voltado a escrever, mas que os escritos dele estão só na cabeça.

Disse também que estava feliz por que a cabeça dele estava voltando a funcionar e ele já podia escrever de novo.

Depois daquele encontro de antes do Natal e nessas outras vezes que o encontrei, fiquei admirado com este senhor e ao mesmo tempo envergonhado de reclamar dos meus problemas e da vida. Mesmo com todos os problemas que este senhor estava passando, e que provavelmente vai continuar passando, nunca o vi reclamando. Todas as vezes que o vi até hoje ele sorriu para mim.

Às vezes essas situações vêm para nos acordar, sacudir e perguntar: "Quais são mesmo os seus problemas?" "Do que era mesmo que você estava reclamando?"


Cena do filme "Que droga de vida"

4 comentários:

Patricia Carol disse...

Dá vontade de chorar, ouvindo esse relato tão comovente, do pobre abandonado animando o cidadão com vida "normal". Além da gente parar pra conversar, como sinal de respeito ao idoso abandonado, e além de a gente sair do encontro sabendo que não poderia sozinho resolver o problema da indigência, se a gente pára pra pensar, o consolo que nos dá é sabermos que falamos com JESUS CRISTO, e que ELE, nos trata de "AMIGO"! Quem sabe, a ALEGRIA que ele transmitiu com suas palavras foi justo a PRESENÇA DE DEUS DENTRO DELE...Se não podemos resolver o problema do pobre, com nossa rápida parada e conversa, já lhe trouxemos nosso CARINHO DE IRMÃOS. Será que a gente se lembra de dar essas "paradinhas" todos os dias, ao passarmos por uma igreja e falarmos com o "nosso POBREZINHO" Jesus? Daqui, vou direto realizar esse propósito!

Regina disse...

Que história impressionante!

José Antonio Oliveira disse...

Hoje ele ganhou uma bolinha de fisioterapia para a mão, um caderno, canetas, camiseta, duas camisas, bermuda, cuecas e comida. Cantamos parabéns e tiramos retrato que uma senhora disse que vai revelar para dar a ele. Várias pessoas passaram e o cumprimentaram pelo aniversário, além das que estavam lá cantando parabéns. Festa na rua.

Pedro disse...

Muito legal o artigo.

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