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sexta-feira, 11 de março de 2011

A lenda do cavaleiro verde

Este texto, escrito pelo prof. Paulo Oriente Franciulli sobre o livro: Sir Gawain e a lenda do cavaleiro verde é relativamente extenso, mas recomendo a leitura pois pode ser muito útil para debates em sala de aula, conversas em família e para falar sobre virtudes.

Anônimo
Ed. Siruela
Madrid, 1982

I. Introdução: Poema de mais de 2500 versos, escrito presumivelmente no séc. XIV, que deve a sua redescoberta a J.R.R. Tolkien. O autor do The Lord of the Rings publicou a edição canônica de Sir Gawain (Galvão, em português) em 1952, trabalhando em conjunto com E. V. Gordon.
Os versos de Sir Gawain são agrupados de forma irregular, com estrofes formadas por um número incerto deles (entre 16 e 20), na sua maior parte sem rima nem metro, mas regularmente aliterados.
Está escrito originalmente num antigo dialeto do noroeste da Inglaterra, uma linguagem remota e de difícil compreensão.

É considerado o melhor texto artúrico inglês. Exemplifica as virtudes cavalheirescas da coragem e da lealdade. Sem ser um relato a serviço da moral, é extremamente moral.
Os dois temas básicos da obra (jogo da decapitação – também chamado de Jogo do Natal - e tentação de Gawain), que podiam ser encontrados separadamente em fontes célticas e francesas, reúnem-se para formar uma trama bem montada. Para alguns, é o ancestral do gênero realismo fantástico, devido a algumas passagens de teor não natural.

Observa-se que o inverno é a estação preferida pelo poeta para situar a obra. Ele fala da neve sobre as rochas, das correntezas geladas e da névoa sobre a colina. Também se percebe que o autor praticava ou acompanhava de perto as caçadas, por causa da riqueza de detalhes com que as descreve.
O diálogo entre Gawain e a Senhora do Castelo é um paradigma do amor cortês, já desenvolvido naquela altura (na Literatura, seu criador foi André o Capelão, nos seus “De amore libri tres”.)
O protagonista apareceu pela primeira vez na saga artúrica na “Historia regum Britanniae”, de Geoffrey de Monmouth, com o nome de Walwanius; e na história de William de Malmesbury (1120), onde há uma referência ao descobrimento da sua tumba em Walwyn’s Castle, em Pembrokeshire. É tido como sobrinho do Rei Arthur, pois conta o poema que estava em Camelot com seu irmão Agravain, ambos filhos de uma irmã do rei (provavelmente Enna). Passa a ser o heroi central das lendas célticas mais antigas, até converter-se num personagem literário, desconectado do histórico.

II. Resumo do Poema: A narrativa começa durante a celebração das festas natalinas em Camelot, mais precisamente no dia 1º de janeiro, com a chegada inesperada do imenso e assombroso Cavaleiro Verde (cf. estrofe 7), que adentrou no salão do banquete com o cavalo verde (estrofe 9) e portando um grande machado. De forma arrogante, propôs à Corte o “jogo de Natal” (estrofe 13), cujo modelo remontava às iniciações guerreiras dos celtas.

O prêmio ao vencedor seria o seu machado, bastante valioso. O rei Arthur aceitou entrar nesse jogo, depois de o Cavaleiro Verde ter ironizado a ele e aos seus nobres cavaleiros; mas Gawain suplicou ao Rei que o deixasse assumir o desafio, pois lhe parecia impróprio que Arthur o fizesse, devido às normas. Aduziu que a sua vida, se perdida, seria menos lamentada que a do rei e a dos demais cavaleiros (estrofe 16). Arthur acedeu, entregou o machado a Gawain e o abençoou.

O jogo consistia no seguinte: Gawain teria de desfechar um golpe contra o gigante com o machado, a fim de decapitá-lo; se este não morresse, dentro de um ano e um dia desferiria um golpe contra o pescoço de Gawain, no seu Castelo, com a arma que preferisse.

O jovem desafiado pegou o pesado machado, enquanto o Cavaleiro Verde inclinava levemente a cabeça e lhe oferecia o pescoço. Gawain vibrou um poderoso golpe, e a cabeça atingida rolou pelo chão. Mas, coisa curiosa, o Cavaleiro manteve-se em pé. E não só isso: caminhou até onde estava a cabeça, levantou-a do chão, abriu os olhos e disse: “Prepara-te Gawain para cumprir o que prometeste. Vai à Capela Verde, e não duvides de que lá receberás um golpe como este.” Acrescentou que era conhecido como o Cavaleiro da Capela Verde. “Procure-me, e encontrar-me-ás. Do contrário, passarás por covarde.” Dito isso, saiu cavalgando velozmente pela porta do grande salão (estrofes 19 e 20).

O Rei Arthur tentou tirar importância do ocorrido, alegando serem artes próprias das festividades que comemoravam. Voltaram ao banquete. Mas Sir Gawain sabia no seu íntimo que começava uma singular empresa, com fim pouco promissor. Essa reflexão tornou-o taciturno pelo resto do dia.
Poeticamente, o autor passa a descrever a passagem do tempo: as festas de Natal foram substituídas pela austera Quaresma. A estação que combate os rigores do inverno chegou, com suas chuvas brilhantes e cálidos aguaceiros. Veio o verão, em que o Zéfiro suspira entre as relvas. A seguir, urgia fazer a colheita, pois o inverno de novo voltaria e seria precedido pela lua de São Miguel (estrofes 22 e 23).

Era hora de Gawain pôr-se a caminho. Houve um banquete no Dia de Todos os Santos, em sua honra. Os cavaleiros da Távola Redonda – Iwain, Eric, Lancelot, Doddinel o Selvagem, o Duque de Clarence, Lucas o Bom, Sir Boors e seu irmão Leonel, Sir Bedivere e Mador – e as damas estavam profundamente comovidos, por causa do amor que sentiam pelo jovem.

No dia seguinte, Gawain vestiu sua armadura (estrofe 25), ouviu Missa e despediu-se afetuosamente do Rei e dos seus companheiros da Corte. Montou o Gwyngalet – “Branco e Atrevido”, presente da fada Exclaramont a Scanor o Formoso –, apanhou o escudo com o Pentáculo – símbolo concebido por Salomão para anunciar a verdade sagrada: as cinco pontas são unidas por linhas que se cruzam, sendo intermináveis numa ou noutra direção; os ingleses chamam-no Everlasting Knot, Nó Sem Fim – e se foi.
Percorreu terras longínquas, por caminhos estranhos e tortuosos, e todos os que o viam suspiravam com tristeza, afligidos pelo seu infortúnio: “Eis um nobre que poderia ser Senhor Duque e Capitão de Cavaleiros, mas morrerá decapitado por um ser infernal”, diziam (estrofe 29).

Até que, “não tendo por outro companheiro de caminho senão o próprio Deus”, Gawain chegou ao norte de Gales. Conservando sempre à sua esquerda as ilhas Anglesey, vadeou o mar, passou por Holy Head e adentrou no Wirral. Com quem cruzava, perguntava pelo Cavaleiro Verde, ou pela Capela Verde. Respondiam-lhe que não os conheciam.

Nas montanhas, enfrentou aventuras sem fim: sustentou lutas mortais contra dragões e lobos; pelejou duas vezes com povos selvagens; manteve contendas com touros, ursos, javalis e ogros, que o acossavam do alto dos desfiladeiros. O pior era o inverno, pois tinha de dormir dentro da sua armadura e enfrentar a neve que caía do céu. Até que chegou a Véspera da Noite Boa; Gawain rezou a Santa Maria, pedindo que o guiasse no caminho e o fizesse encontrar um refúgio (estrofe 31).

Na manhã da véspera do Natal, enquanto cavalgava Gwyngalet por um bosque espesso, lamentou não poder assistir à Missa. Rezou a Deus entre lágrimas, fez o sinal da cruz, arrependeu-se dos seus pecados e pediu a Cristo que amparasse a sua causa (estrofe 32).

Até que deu com o mais atrevido dos castelos, no alto de um outeiro. Agradeceu a Jesus e a S. Julião Hospitaleiro, conhecido por ter sido um caçador cruel, assassino dos seus pais e, depois da conversão, um homem de vida extremamente penitente, devotada a ajuda aos demais, em especial os peregrinos (estrofes 33 e 34). Os guardas lhe deram honroso acolhimento. O Senhor do Castelo ofereceu-lhe pousada pelo tempo que quisesse. Era um homem impressionante, muito grande, na plenitude das forças, com uma barba longa e lustrosa da cor do pelo do castor, membros musculosos e robustos, a face feroz como o fogo, as palavras francas e corteses (estrofe 36).

O castelo era ricamente mobiliado, e vários servos foram destacados para servir Gawain. Depois de banhado e vestido com trajes oferecidos pelo castelão, Gawain apareceu com tal aspecto que todos comentaram: “Nunca se viu sair do Criador cavaleiro mais formoso” ou “É o nobre que nos ensinará o que é o amor cortês”. No banquete que lhe foi oferecido, contou quem era, de onde vinha e qual a sua aventura. Veio a dama do Castelo – a mais formosa das mulheres sobrepujando a própria Geneviève –, acompanhada de uma venerável anciã, e todos foram assistir ao ofício divino do Natal.

Houve festas e banquetes em honra de Gawain até o dia de São João. Gawain quis partir, mas o Senhor do Castelo não permitiu; disse-lhe que podia descansar ali até o ano novo, pois a Capela Verde ficava a apenas duas milhas de distância. Em cada um dos dias seguintes, o Senhor do Castelo foi caçar; antes, fez um estranho pacto com Gawain: o que ele conseguiria na caçada seria deste, ao passo que o obtido pelo sobrinho de Arthur em cada dia seria do Senhor do Castelo (estrofe 45). Aconteceu que, enquanto Gawain se refazia do cansaço da viagem, a Senhora do Castelo tentou seduzi-lo por três vezes, enquanto o marido estava nos campos. Gawain, invocando a Deus e a Virgem Maria, sem deixar de ser delicado, repeliu os seus intentos, defendendo a sua pureza firmemente, e mostrando também um grande respeito pelo Senhor do Castelo (estrofes 48 a 52, 58 a 61). Ao final de cada dia, o Senhor entregava a Gawain os muitos frutos da sua caça – cervos, javali e raposa –, enquanto Gawain o beijava, um sinal da lealdade que manteve para com ele. (Cf. estrofe 55). Porém, na última e mais destemida investida, a Senhora conseguiu ao menos que Gawain aceitasse o seu cinto de seda verde com fios de ouro, que tinha poderes de preservar da morte o cavaleiro que o usasse em pugnas com outros cavaleiros. A dama pediu a Gawain que guardasse total segredo desse presente, com o que ele não o deu, nem o mencionou, ao Senhor do Castelo naquela noite (estrofes 73 e 74). Vale lembrar que pela manhã, antes da Missa, Gawain se confessou de todos os seus pecados, em preparação para o desfecho dos seus dias.
O ano novo chegou. O sobrinho de Arthur despediu-se agradecido dos Senhores do Castelo e dos cortesãos, que sentiram a sua partida. Enquanto deixava o Castelo, pediu a Deus pelos que ali moravam (estrofe 82). Um servo acompanhou-o para mostrar o caminho. Quando devia voltar, o servo aconselhou-o a desistir da luta, pintando com cores fortes a fama de maldade e ferocidade do Cavaleiro Verde, e prometendo guardar segredo da sua fuga. Gawain agradeceu a preocupação por ele, mas disse que não poderia fugir, pois seria um ato de covardia sem qualquer possibilidade de desculpa. “À vontade de Deus me submeto, a Ele acolho” (estrofes 84 a 86).

Gawain chegou então à Capela Verde, que era um oratório em mau estado, coberto de grama. Uma verdadeira “capela de desventura” (estrofe 88). Surgiu em seguida o Cavaleiro Verde, com um machado dinamarquês enorme, cuja folha de mais de um metro de largura tinha acabado de ser afiada. “Bem, meu senhor, vejo que és fiel ao compromisso” (estrofe 89). O gigante pediu a Gawain para preparar-se, a fim de que “eu te dê o teu pagamento.” O jovem inclinou-se e adotou uma atitude impassível (estrofe 90).
O enorme homem verde colocou-se em posição, alçou o machado e descarregou o golpe com toda a sua energia. Mas, pouco antes de atingir o pescoço de Gawain, o Gigante Verde parou o machado, enquanto dizia: “Tu não és Gawain (...), porque te encolhes de temor antes de sentir o dano. (...) Eu não me encolhi quanto tu descarregaste o golpe sobre mim (...). A minha cabeça caiu aos teus pés, sem que eu tivesse fugido. A ti, em troca, encolhe-te o coração.” Gawain admitiu o gesto, e afirmou que não voltaria a encolher-se. O outro, então, levantou o machado louco de fúria,e descarregou um golpe poderoso, sem encontrar o corpo do sobrinho de Arthur, já que recuou o braço para não o atingir. Este se manteve firme à espera da morte, imóvel como uma pedra. “Agora que recuperaste a coragem, poderei descarregar o meu golpe”.

Irritado, Gawain pediu para ser acertado de uma vez. O Cavaleiro Verde se preparou de novo para atacar. Fez baixar o machado, produzindo desta vez uma leve incisão no pescoço de Gawain, sem contudo cortá-lo. O sangue do jovem saltou da ferida e tingiu a neve do chão. O agressor se afastou um pouco, deixou o machado dinamarquês descansar no solo, apoiou-se nele e falou, com a sua voz tonitruante, que tudo estava cumprido. Havia prometido o golpe, e lho deu. Primeiro, confessou, ameacei-o de brincadeira, sem o atingir; isso se deveu ao pacto da primeira noite, em que Gawain foi sincero e lhe guardou fidelidade. O outro foi pelo dia seguinte, em que Gawain o beijou. Por isso, não foi ofendido pelo machado. Mas o terceiro golpe, que cortou a sua carne, foi porque Gawain falhou, já que aceitou o cinto da Dama do Castelo e descumpriu o pacto que fizeram, faltando à verdade.

Portanto, o Cavaleiro Verde era o Senhor do Castelo, que havia enviado a esposa três vezes para provar a virtude de Gawain. Este se mostrou o cavaleiro mais perfeito da terra pela sua pureza e lealdade. Mas a sua falha foi aceitar o presente por temor da morte, e não o ter dado para o Senhor do Castelo, descumprindo o seu trato. Mostrou um forte apegamento à própria vida, o que, no entanto, não era grave o suficiente para receber a morte naquela ocasião.

Ao ouvir isso, Gawain foi tomado de uma ira contra si mesmo, por causa da sua avareza pela vida e notável covardia. E pediu que o Cavaleiro Verde ou Senhor do Castelo o castigasse. Este alegou que já bastava o corte sofrido, e realçou o mérito do rapaz em admitir seu erro. Ademais, deu-lhe de presente o belo machado dinamarquês, como fora prometido no dia de ano novo anterior, e o convidou para comemorar esse feito no seu castelo (estrofes 91 a 96).

Gawain desculpou-se. Teria de voltar logo a Camelot, de onde se ausentara havia muito, e cujos habitantes estavam sequiosos de notícias suas. Agradeceu vivamente o machado, uma vez que seria a testemunha da sua culpa. “Assim, quando o orgulho fustigar o meu coração, um olhar a esta prenda moderará os meus anelos” (estrofe 98). Só pediu uma coisa ao Cavaleiro Verde: que lhe dissesse o seu verdadeiro nome. “Nesta terra sou Bertilak de Hautdesert, e me tens assim encantado e mudado de cor pelo poder da Fada Morgana, que habita a minha morada”. Era a dama mais velha, que acompanhava a Senhora do Castelo. Morgana, meio-irmã de Artur, era filha da duquesa de Tintagel, que concebeu Arthur de Ulther. Portanto, era tia de Gawain.

Ambos se abraçaram, beijaram-se e recomendaram-se mutuamente “ao Príncipe do Paraíso”. Gawain empreendeu o regresso, montando o inseparável Gwyngalet. Muitas foram as suas aventuras, porém o poeta não as quis registrar. Acaba dizendo que a ferida cicatrizou, mas o cinto passou a ser levado sempre no seu braço esquerdo, como lembrança da sua falta. Imenso foi o júbilo com que o acolheram em Camelot. Contou a todos os prodígios que enfrentara, sem faltar as partes tocantes à sua covardia. O Rei Arthur e demais cavaleiros e damas, devido ao amor que sentiam por Gawain, fizeram o pacto de levar doravante uma cinta verde brilhante, que passou a ser o distintivo da Távola Redonda. A última frase do poema é: “Aquele que leva a Coroa de Espinhos conceda-nos a sua alegria” (estrofes 100 e 101).

III. Conclusão: Gawain é o modelo do cavaleiro cortês, com todas as virtudes e perfeições do nobre medieval.

“A minha força é a força de dez homens, porque o meu coração é puro”. Servidor de Nossa Senhora, leva o seu emblema no escudo: o Pentáculo.

O poeta diz que o símbolo do Pentáculo se ajustava perfeitamente a Gawain, porque ele foi fiel a cinco coisas: os seus cinco sentidos eram irreprocháveis, jamais seus cinco dedos falharam, tinha fé nas cinco chagas de Cristo, entrava nas batalhas pensando nessas chagas e tirava a sua coragem das cinco alegrias de Nossa Senhora.

Além disso, possuía cinco virtudes: liberalidade, bondade, castidade, cortesia e piedade.

O poema pode ser lido como o juízo de Gawain, e a purificação que vai sofrendo ao longo da aventura. A Senhora do Castelo o tornará rico em temperança; o cumprimento da promessa, em fortaleza; o ciclo de espera e o caminho, em desprendimento; a ferida no pescoço e o cinto verde, em humildade; a volta a Camelot, em vitória, pois derrotou todos os riscos, inclusive o de extraviar-se no futuro.

Enfim, o Cavaleiro Verde é o instrumento da Providência para a renovação espiritual de Gawain (dois dados a reforçar isto: a invocação que o Green Knight faz logo no começo do poema – estrofe 12 – sobre “o que está sentado nas alturas”; o fato de ser o Cavaleiro da Capela Verde; e o grande elogio que o gigante faz a Gawain depois dos três golpes).

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